Uma das ferramentas mais importantes na teoria dos números é a
aritmética modular, que envolve o conceito de congruência. Uma
congruência é a relação entre dois números que, divididos por um
terceiro - chamado módulo de congruência - deixam o mesmo resto. Por
exemplo, o número 9 é congruente ao número 2, módulo 7, pois ambos
deixam resto 2, ao serem divididos por 7. Representamos essa congruência
do exemplo por 9 ≡ 2, mod. 7. Foi o brilhante Gauss que observou que
usávamos com muita freqüência frases do tipo “a dá o mesmo resto que b
quando divididos por m” e que essa relação tinha um comportamento
semelhante à igualdade. Foi Gauss então que introduziu uma notação
específica para este fato e que denominou de “congruência”.
Muito
se tem escrito sobre esse tema, principalmente nos livros sobre teoria
dos números. É um conceito muito importante e que está relacionado com
divisibilidade e os restos de uma divisão de números inteiros.
O
que não é muito comum é o estudo das muitas aplicações que o tema possui
no cotidiano de todas as pessoas. Diferentes códigos numéricos de
identificação, como códigos de barras, números dos documentos de
identidade, CPF, CNPJ, ISBN, ISSN, criptografia, calendários e diversos
fenômenos periódicos estão diretamente ligados ao tema, conforme
mostraremos em nosso estudo.
É um tema bastante atual e que pode
ser trabalhado já nas classes do Ensino Fundamental e gerador de
excelentes oportunidades de contextualização no processo de ensino /
aprendizagem de matemática.
Inicialmente vamos mostrar alguns
elementos teóricos sobre a aritmética modular e, na segunda parte do
trabalho teremos a apresentação de alguns exemplos de aplicação desse
importante e interessante tema da área de teoria dos números.
1) Noções básicas da aritmética modular
1.1) Exemplos iniciais:
Antes
de apresentarmos as definições e propriedades relacionadas à
congruência, vamos desenvolver três exemplos que poderiam ser colocados a
alunos da Educação Básica, ainda não familiarizados com o tema, como
introdução ao assunto.
Exemplo 1:
Vamos apresentar uma
questão retirada do banco de questões do site da OBMEP (Olimpíada
Brasileira de Matemática das Escolas Públicas). Lá sempre temos
encontrado questões interessantes e provocativas para o preparo de
nossos alunos da Educação Básica.
A, B, C, D, E, F, G e H são os
fios de apoio que uma aranha usa para construir sua teia, conforme
mostra a figura. A aranha continua seu trabalho. Sobre qual fio de apoio
estará o número 118?
1 Ilydio Pereira de Sá – Mestre em Educação Matemática, professor da UERJ, da Universidade Severino Sombra e do
Colégio Pedro I, Rio de Janeiro.
Aritmética modular e algumas de suas aplicações – Ilydio P. de Sá 2
SOLUÇÃO: Vejamos o que está acontecendo?
É
claro que alguma pessoa bem paciente poderia continuar construindo a
tabela até que aparecesse o número 118. Assim ela saberia em qual fio a
aranha iria estar. Convenhamos que não seria uma solução muito prática e
nem rápida. Imagine se a questão perguntasse o fio correspondente ao
número 890?
Podemos observar que os fios se repetem a cada oito
números e essa periodicidade faz com que os números de cada fio formem
uma progressão aritmética de razão igual a 8, ou seja, aumentem de oito
em oito. Observamos também que cada fio pode ser representado a partir
dos múltiplos de 8. O fio A corresponde aos números que são múltiplos de
8, ou seja, números que divididos por 8 deixam resto zero (8. n, com n ∈
IN). O fio B corresponde aos números que são múltiplos de 8, mais 1, ou
seja, números que divididos por 8 deixam resto 1 (8.n + 1, com n ∈ IN).
O fio C corresponde aos números que são múltiplos de 8, mais 2, ou
seja, números que divididos por 8 deixam resto 2 (8.n + 2, com n ∈ IN) e
essa lógica se mantém até o fio H, definido pelos números que divididos
por oito deixam resto 7. É claro que para saber sobre qual fio estará o
número 118, basta verificarmos a qual dessas famílias tal número
pertence e isso pode ser facilmente obtido ao dividirmos 118 por 8.
Vejamos:
118 | 8 |
6 | 14 |
Todos
os números de nosso exemplo, que estão no mesmo fio, tem uma
particularidade em comum, deixam o mesmo resto ao serem divididos por 8
e, como já comentamos na introdução, são congruentes entre si, no módulo
8. O número 14, por exemplo, é congruente ao número 2, no módulo 8, e
isso significa que esses dois números deixam o mesmo resto quando
divididos por 8 (verifique que ambos estão sobre o fio G). Verificando:
Verificamos que o número 118 é igual a 8 . 14 + 6, ou seja, pertence à família dos números que estão no fio G.
14 | 8 2 8 |
6 | 1 6 2 |
Aritmética modular e algumas de suas aplicações – Ilydio P. de Sá 3
Simbolicamente, poderemos escrever: 14 ≡≡≡≡ 2, mod. 6 Exemplo 2: Aritmética do relógio
horas é congruente a 5 horas, módulo 12. Tanto 17, como 5, divididos por 12, deixam resto 5 |
Trata-se
de um caso de congruência, módulo 12 (nos relógios analógicos, é
claro). Note que 13 horas é congruente a 1 hora, no módulo 12. Ambos
divididos por 12, deixam resto 1. 17 e assim, sucessivamente.
1 ≡ 13 ≡ 25 ≡ | , mod 12 |
5 ≡ 17 ≡ 29 ≡ | , mod 12 |
Assim as horas marcadas num relógio analógico constituem também um caso clássico de congruência, nesse caso com módulo 12.
Exemplo 3: Vejamos uma aplicação interessante sobre o tema, relacionada aos calendários:
Vamos
supor que você saiba em qual dia da semana caiu o dia 1º de janeiro de
um determinado ano. Em 2006, por exemplo, foi um domingo. Imaginemos que
você deseja saber quando cairá um outro dia qualquer (vale para
qualquer ano). É só montar uma tabela para essa primeira semana, que no
caso será:
Verificamos aqui que estamos novamente diante de um
caso de congruência, módulo 7 nesse caso. Digamos que estivéssemos
interessados em descobrir em que dia da semana caiu o dia 5 de julho (e
não temos um calendário em mãos, é claro). Primeiro precisamos ver
quantos dias existem de 1 de janeiro até 5 de julho. Vejamos:
Janeiro | = 31 dias |
Fevereiro = | 28 dias (2006 não é bissexto) |
Março | = 31 dias |
Abril | = 30 dias |
Maio | = 31 dias |
Junho | = 30 dias |
Julho | = 5 dias |
Total | = 186 dias. |
Agora,
é como se tivéssemos uma fila de 186 dias e estamos desejando saber, na
congruência de módulo 7 (7 dias da semana) qual o correspondente ao186.
Acho que você concorda que estamos
Aritmética modular e algumas
de suas aplicações – Ilydio P. de Sá 4 diante de uma situação bem
semelhante à que vimos no problema da aranha e também no problema dos
relógios analógicos.
186 | 7 |
4 | 26 |
Se dividirmos 186 por 7, teremos:
Logo,
o 186 é congruente ao 4, no módulo 7. Como o dia 4 de janeiro de 2006
foi uma quartafeira, o 186º desse mesmo ano também o será e, é claro,
que todas as demais quarta-feiras deste ano serão ocupados por números
congruentes ao 4, módulo 7.
Assim, com os três exemplos que
mostramos, podemos observar que em nosso cotidiano existem inúmeras
situações onde se faz presente a noção de congruência, módulo k.
Calendários, relógios analógicos e problemas em geral envolvendo
repetições periódicas. Mostraremos em nosso estudo que na criptografia e
em diversos números de documentos de identificação (como no CPF, por
exemplo), também está presente a Aritmética Modular e a noção de
congruência.
1.2) Conceitos Básicos da Congruência módulo k
Se
os inteiros a e b dão o mesmo resto quando divididos pelo inteiro k (k
> 0) então podemos dizer que a e b são côngruos, módulo k e podemos
representar:
a ≡ b mod k
Uma maneira equivalente de dizer
isso é afirmar que a diferença (a – b) ou (b – a) é divisível por k, ou
que k é divisor dessa diferença. Veja um exemplo:
A congruência define uma equivalência, pois atende às propriedades reflexiva, simétrica e transitiva, ou seja:
a
≡ a, mod k (reflexiva) a ≡ b, mod k, então b ≡ a, mod k (simétrica) a ≡
b, mod k e b ≡ c, mod k, então a ≡ c, mod k (transitiva)
Algumas
propriedades da congruência Se a ≡ b, mod k e c ≡ d, mod k, então: a + c
≡ b + d, mod k; a - c ≡ b - d, mod k; a . c ≡ b . d, mod k
É claro que todas essas propriedades precisam ser demonstradas. Vejamos a demonstração da primeira.
é divisível por k, para provarmos que a + c ≡ b + d, teremos que mostrar que | (a + c) – (b + d) é |
Se
a ≡ b, mod k, então a – b é divisível por k, analogamente, se c ≡ d,
mod k, então c – d também divisível por k. Vamos colocar essa diferença
na forma (a – b) + (c – d) e verificar se é divisível por k. Como, pela
hipótese, (a – b) e (c – d) eram divisíveis por k, é claro que a soma (a
– b) + (c – d) é também divisível por k, o que demonstra a primeira
propriedade. Tente fazer as demais demonstrações, de modo análogo.
Aritmética modular e algumas de suas aplicações – Ilydio P. de Sá 5 2) Algumas aplicações da congruência
2.1) Sistemas de identificação
Em
qualquer texto, um erro de ortografia numa palavra pode ser facilmente
percebido, pois ou a palavra não faz parte do idioma ou não faz sentido
com o contexto. Por exemplo, se digitamos engenheior, logo percebemos
que fizemos uma inversão das duas últimas letras. Mas, quando isso
ocorre com os algarismos de um número, de um código de identificação
qualquer, não teríamos como perceber a troca num simples olhar. Para
isso e também para minimizar fraudes, foram criados os chamados dígitos
de controle ou verificação. Tais dígitos são normalmente baseados na
noção de congruência que mostramos anteriormente.
Mostraremos a seguir alguns desses casos de dígitos de controle usados como identificadores. 2.1.1) ISBN
Um
dos exemplos mais antigos é o sistema International Standard Book
Number (ISBN) de catalogação de livros, CD-Roms e publicações em braile,
que foi criado em 1969. A necessidade que as editoras têm de catalogar
os seus livros e informatizar o sistema de encomendas serviu de
motivação na geração desse código.
A vantagem é que, por ser um
código numérico, ultrapassa as dificuldades geradas pelos diversos
idiomas do mundo, bem como a grande diversidade de alfabetos existentes.
Dessa forma, poderíamos, por exemplo, identificar através do ISBN um
livro japonês.
Em tal sistema, as publicações são identificadas
através de 10 algarismos, sendo que o último (dígito de controle) é
calculado através da aritmética modular envolvendo operações matemáticas
com os outros nove dígitos. Esses nove primeiros dígitos são sempre
subdivididos em 3 partes, de tamanho variável, separadas por hífen, que
transmitem informações sobre o país, editora e sobre o livro em questão.
Por
exemplo, a língua inglesa é identificada somente pelo algarismo 0 e a
editora McGraw-Hill tem um código de 2 algarismos que a identifica,
dessa forma, restam ainda 6 algarismos para a identificação de suas
publicações, havendo pois a possibilidade de 10 6 = 1 0 0 de títulos.
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